Um dos fatos mais cruéis em nossa condição de humanos é a passagem do tempo. O tempo tira seus amigos, te ensina lições, deixa marcas indeléveis em sua personalidade. Se há 40 anos atrás você, apesar de refletir sobre a vida, ainda caía na fanfarra e no hedonismo, as quatro décadas mudam radicalmente sua vida. O ambiente a sua volta muda. A sua aparência muda. Alguns assuntos pelos quais você se interessa também mudam. É o amadurecimento que as décadas de sobrevivência a um mundo caótico e mutante trazem, que também faz sua maneira de encarar o mundo mudar. Você continua com o mesmo nome, mas se suas opiniões não forem substituídas por novas, elas ganharão novas perspectivas.
Na música contemporânea, isso é uma verdade e tanto, especialmente para homens feito Bob Dylan. Conhecido inicialmente como o maior ativista político do mundo da música na década de '60, legítimo herdeiro e discípulo da "máquina de matar fascistas" Woody Guthrie. De músicas como "Like A Rolling Stone" e "Knockin' On Heaven's Door" e discos feitos "The Times They Are A-Changin'", sua perspectiva de mundo foi mudando. Ele viu os Beatles acabarem, os Rolling Stones perderem Brian Jones, perdeu seus amigos e ídolos feito o próprio Guthrie, George Harrison, Johnny Cash e Roy Orbinson, viu Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Doors nascerem e desaparecerem e teve a importante passagem de Joan Baez em sua vida. À medida que envelhecia, o 'homem de preto' Johnny Cash conversava amargamente com o ouvinte sobre a morte que se aproximava. E Dylan, totalmente fora da velocidade desses tempos modernos, leva cinco anos para registrar esse "Modern Times", onde ele prossegue escrevendo suas experiências que cada vez mais aumentam o legado que ele deixará quando um dia ele resolver partir. A velocidade não importa mais. Como disse seu último registro do século 20, o tempo está fora da mente.
"Thunder On The Mountain" abre o disco pausadamente, até tomar substância e transformar-se em mais um folk tão característico de Bob Dylan, com seus quase seis minutos e habitual letra gigantesca. O primeiro verso já denuncia uma visão apocalíptica "Raio na montanha, então há fogo na lua", sinceramente sobre si mesmo e a forma como vê o mundo, até descambar na estrofe "Todos estão indo e eu quero ir também/Não quero ter uma chance com alguém novo/Eu fiz tudo o que pude, eu fiz isso certo e então/Eu realmente confessei, não preciso confessar de novo".
A próxima é "Spirit On The Water" tem o ritmo com um pé no freio, em uma linda (e comprida) canção de amor com um clima até inocente em sua parte sonora. A canção é extremamente reflexiva, e porque não dizer, amarga até. Uma perspectiva realista, que Dylan sempre colocou nos seus discos, fazendo questão de dizer que o amor não é sempre algo justo ou prazeroso. Mas a canção ainda apresenta certa felicidade, pois não se chega aos 65 anos com um coração de pedra.
"Rollin' and Tumblin'" destoa da anterior, pois Dylan injeta eletricidade no seu folk (sua ousadia sonora tão odiada inicialmente) e acrescenta mais velocidade na mistura. A letra mistura amor e raiva, tempo e romance, tristeza e promessas de felicidade, numa das características crônicas sonoras do músico que nem sempre paixão é um sentimento normal, puro e intocável, justificado e previsível. "Eu levantei essa manhã, vi o sol nascente retornar/Bem, eu levantei essa manhã, veja o sol nascente retornar/Mais cedo ou mais tarde, você merece queimar", canta Dylan em um dos versos mais impactantes.
Então, o clima cai de novo na delicada balada "When The Deal Goes Down", onde em uma contraposição à anterior, o amor volta, em meio a uma letra ambientada nesse mundo moderno que, se retirarmos a tecnologia crescente, não tem muita diferença do anterior - os costumes e valores mudam lentamente, e o hedonismo e vontade de "viver rápido para morrer jovem" não atinge a todos. É o cara que ainda dá uma rosa quando poderia mandar um buquê virtual por email. É a chuva noturna que segue o trem, que assim como Dylan ainda está nos trilhos impassível com a passagem do tempo, recebendo uma chuva já detectada meterologicamente.
Seguimos então com a quinta música, "Someday Baby", onde senhor Zimmerman, sem a melodia da anterior, mostra ao ouvinte outro folk de respeito, dissecando relacionamentos que se desgastam com o tempo, apesar de ainda amargarem ambas partes, como se podem ver em versos como "viver desse jeito não é uma coisa natural de se fazer/por que eu nasci para amar você?/algum dia, baby, você não se preocupará mais comigo".
"Workin' Man Blues #2" é iniciada por uma das melhores presenças do piano em todo o álbum, que logo dá espaço para a voz de Dylan. Uma letra extremamente observadora, onde vemos que o espectro político de Dylan ainda não se enterrou totalmente, apesar de ultimamente dar maior lugar para as reflexões pessoais. Uma das críticas mais fortes por parte de Bob se encontra em um dos últimos versos "Tenho uma vestimenta nova e uma vida nova/Eu posso viver de arroz e feijão/Algumas pessoas nunca trabalharam um dia em suas vidas/Não sabem nem o que trabalho significa". Mesmo assim, o personagem da canção está mais para um inconformado amargurado do que um inconformado revoltado.
Vamos para "Beyond The Horizon", com seu clima até meio feliz, com uma melodia mais feliz que triste, apesar de lenta. Apesar de todo o conteúdo lírico que nos apresentou até agora, como já disse, Dylan ainda tem esperança, aqui representada pelo refrão mais ensolorado: "Além do horizonte/Na primavera ou no outono/O amor espera para sempre, para um e para todos". Particularmente falando, uma das minhas favoritas.
"Nettie Moore" apresenta uma ótima performance do pandeiro, ainda que de forma discreta, onde uma percussão lenta e fixa guia a música, que aos poucos ganha melodias emocionantes, e a auto-análise continua a acontecer em "Eu sou o filho mais velho de um homem louco/Eu estou numa banda cowboy/Tenho uma pilha de pecados para pagar e não tenho tempo para esconder/Eu teria andado através do fogo, baby, se soubesse que você estava do outro lado". Cheia de personagens que ganham vida nas crônicas de Dylan para povoar as memórias que ele transforma em música. A música é contida, mas é outra das melhores.
O álbum vai se encaminhando para o final quando ganha velocidade de novo em "The Leeve's Gonna Break", onde a percussão apesar de reta apresenta maior ritmo, e os acordes repetidos servem de base para que Dylan cante em uma lírica tipicamente viajada e experiente, perfil de letra que Dylan tanto ajudou a personificar. Um refrão bem marcante para uma coisa que também é marcante e não percebemos - o cotidiano, o corriqueiro.
E "Ain't Talkin'" é a encarregada da vez de encerrar o álbum, com seus quase nove minutos. O piano inicia a canção, até que o vocal entre, e por sua vez, entram também violão, pandeiro e percussão. Dylan parece amargurado, em silêncio, mas ainda gritando por dentro, com o coração ainda queimando. Apesar de afirmar que o sofrimento é inacabável, ele ainda procura chances para redimir. Tocantes melodias permeiam todo o conjunto. Com certeza um grande encerramento.
É certo que a juventude atual é bem diferente da juventude de quarenta anos atrás - o que torna Dylan mais que um revolucionário, ativista, ou herdeiro da máquina de matar fascistas. Ele se tornou um grande personagem sobrevivente do pop. Ele não pereceu e adquiriu a condição de mártir, e assim como Paul McCartney, continuou fazendo sua música, nem tão revolucionária nesses dias onde a música é desconstruída e reconstruída a cada lançamento, mas com certeza de valor histórico inegável; a lembrança que os dinossauros ainda caminham pela Terra. E tem tantos sentimentos quanto os seus sucessores e descendentes. E isso se aplica a qualquer disco que Dylan, McCartney e os Stones venham a lançar - já ganha o status de marco. De coragem, de autenticidade e recompensa por tantos anos de ganhos e perdas, sorrisos e lágrimas. A velhice também faz parte do ser humano, e Dylan demonstra isso aqui... E após 44 anos de discos e mais discos, Robert Allen Zimmerman ainda tem muito a dizer, com palavras que ganham um significado maior a cada ano que se passa - feito uma pedra rolante.
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7 Comments:
só o fato de ter a scarlett no video do single, me fez amar esse disco do bob! =~
Bob Dylan começou como ESCRITOR da geração Beat, e - ouso dizer - é o maior poeta americano de todos os tempos depois de Walt Whitman.
(Ah, e compõe que é uma maravilha. Como Chico Buarque, se acusa Dylan de ser ótimo letrista, mas não ser lá grande compositor. Bullshit! Ambos compõem quase tão bem quanto escrevem).
Ainda não ouvi esse disco novo, mas vindo do maior poeta americano de todos os tempos, deve ser realmente uma excelente obra.
Dylan só não é deus porque é fanho.
Ainda não ouvi o disco porque sou blasfema, mas vindo de Bob Dylan, o disco é, no mínimo, divino. Pouco conheço sobre Dylan, mas sei que ele foi um marco na história. E, como você disse, o tempo passa e as coisas mudam. Acho que a essência de Dylan nunca mudará, acho que seus mundos sempre se redescobrirão e que a música não pode parar. Uma pedra rolante.
Não gostei tanto do disco.
Achei ele meio 'parado' demais. Sei lá, meio difícil de explicar.
Mas está longe de ser um disco ruim.
ah mew... xDDD eu comecei no rock com essas coisas "de tiozão" xDDD
Bob dylan é foda... curto o jeito dele ver e falar das coisas...
Disco bom, resenha boa, tudo de bom xDDD
depois levo um pouco de gelo pro seu saco ;D
x@@@@
BOB DYLAN É NÓIA MAS É DA HORA ^.^
o pai da contracultura. dylan é do caralho, ainda vou ouvir esse. pena q tem gente boa que estraga musicas dele, tipo zé ramalho cantando BATENDO NA PORTA DO CEU. UAUHUHAUHAUH
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