Mas em compensação
Eu quero ver um boogie-woogie
De pandeiro e violão
Eu quero ver o Tio Sam de frigideira
Numa batucada brasileira..."
Já cantou o eterno Jackson do Pandeiro naquele longínquo longiquíssimo ano de 1959, mal sabendo (ou talvez soubesse?) que seus desejos não tardariam a se realizar. E olha que nem aqueles generais chatos, conservadores e caretas conseguiram impedir que uma década inteira fosse puro chiclete com banana, duas décadas antes daqueles subversivos quadrinhos undergrounds de Angeli e Laerte. Ah, e daquele micareiteiro grupo baiano de axé também...
Pois bem. Como todos já sabem, a década de sessenta foi a era da tropicália, movimento artístico-cultural às voltas com música, teatro, cinema e artes plásticas que foi influenciado pelo antropofagismo, pela pop-art e pelo concretismo que absorvia qualquer elemento cultural apetecível a eles, fosse ele erudito, pop ou comum. E juntos a tantos artistas dispostos a chutar o pau da barraca, vinham de São Paulo os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias juntos a uma adorável ruiva chamada Rita Lee. Formado a partir de bandas como The Wooden Faces, Six Sided Rockers, O'Seis e Konjunto, o trio foi chamado pelo cantor Ronnie Von para servir de sua banda de apoio, fazendo assim sua estréia televisiva no programa "O Pequeno Mundo de Ronnie Von". E já pressentindo o caráter revolucionário do grupo, sugeriu um nome diferente e chamativo, inspirado em um livro de ficção científica de um escritor francês chamado Stefan Wul, perfeitamente cabível no estilo disforme e insano que o grupo seguia: Os Mutantes.
Em 1967, participam do Festival da Record ao lado de Gilberto Gil na música "Domingo No Parque" e do claramente SargentPepperniano "Tropicália Ou Panis Et Circenses", revolucionário disco para a música brasileira em que vários artistas como os próprios Mutantes, o já supracitado Gil, Caetano Veloso, Nara Leão e Gal Costa davam voz a uma enxurrada de músicas que passariam para a eternidade sob suas vozes, tudo sob a batuta do genial maestro Rogério Duprat. Mas faltava que Os Mutantes desbundassem sozinhos, assim como seus parceiros de disco já haviam feitos.
Desejo atendido em junho de 1968, pois. Naquele ano o trio lançava seu primeiro trabalho em LP, intitulado simplesmente de "Os Mutantes". Apesar do tanto que foi dito na época e polemizado nas décadas seguintes, o disco era além de mero filhote da fase psicodélica dos quatro fabulosos de Liverpool; de sonoridade muito mais anárquica que qualquer banda gringa, cabia tudo no caldeirão desses três bruxos: psicodelia, música concreta, distorções de guitarras, feedback, truques de estúdio, música erudita, samba... Com Arnaldo nos baixos, teclados e vocais, Rita nos vocais e percussões, Sérgio Dias nas guitarras e vocal e amparados pelos arranjos de Duprat e a bateria de Dirceu, o disco ultrapassava os rótulos e fronteiras nacionais e internacionais de qualquer gênero musical conhecido no período. As letras, assim como o som, caminhavam entre o sentimental, o nonsense, o sarcástico, o antropofágico, o muderno e o concretista, fazendo deste álbum dos registros mais originais lançados não apenas na história da música brasileira, mas na história mundial da música contemporânea.
Eu sei que vosso ceticismo aumenta dia após dia, mas não exagerem tanto dessa vez. Mas tudo bem, se a vontade de ser blasé falar mais alto, deixo que as trombetas da abertura "Panis Et Circenses", composição da dupla Gil e Caetano, te empurrem na cadeira e os mutantes comecem a guiar os incrédulos em uma peça orquestrada, lisérgica, complexa e chocante, que ia além até do que seus influenciadores Beatles faziam; E Rita canta sob um ritmo pulsante a cativante letra que contém versos "Eu quis cantar/Minha canção iluminada de sol" e "Mandei fazer/De puro aço luminoso um punhal/Para matar o meu amor e matei", sempre reclamando que as pessoas na sala de jantar pouco prestam atenção nela, mais preocupadas em nascer e morrer, numa provável crítica aos costumes da alienada nação brasileira na época. E a canção é pura melodia, é pura e vertiginosa alucinação, é pura zoeira com suas brincadeiras de estúdio que imitam um animado jantar, é tudo isso e um pouco mais. Saia daí da sala de jantar e venha aqui um minuto, por favor, ouvir a próxima surpresa...
..."Tosse, todo mundo tossindo, vai! cof, cof-cof, AAARGH!". É dessa horripilante forma que o grande Jorge Ben, participando especialmente, dedilha no violão os primeiros acordes no violão de sua composição "A Minha Menina", seguido de perto para o riff distorcido e super elétrico de guitarra e o vocal chapado e em transe de Arnaldo cante "Ela é minha menina/E eu sou o menino dela/Ela é o meu amor/E eu sou o amor todinho dela", entre outros versos inocentes, apaixonados e fascinados, por vezes ate oníricos. A cozinha tem um sabor brasileiro incrível, com um groovezaço do baixo e uma percussão forte e pesada, deixando a música com um ar inovadoríssimo. E a canção segue nesse verdadeiro boogie-woogie de pandeiro e violão até acabar de forma tremendamente divertida.
Ruídos de água pingando nos apresentam "O Relógio", balada arrastada e lenta, com um baixo sólido e melodias doces, onde Rita lamenta... Que seu relógio parou de funcionar! Descontando o sarcasmo, podia até estar no "Sgt. Peppers", se não explodisse de maneira violenta por alguns segundos para então voltar indelicadamente para o clima de balada. Os arranjos fragmentados de Rogério Duprat só ajudam a ter certeza que a forma de governo optada pelos justicieros do país dos Baurets é anarquia, pura e simples. E sim, naquela concepção preconceituosa de bagunça, zoeira e violência... E com muito mais graça que aqueles grupos conservadores chatos! Só não tem mais graça por causa da coitada da Rita... Como ela vai ver a hora em que seu amor chegará? "E no mar me atirei/Com o relógio nas mãos e pensei/Ele é à prova d'água/22 rubis"...
"Adeus Maria Fulô" abre ao som de passarinhos e vocais etéreos, quase sumidos e distorcidos. Eis que entra um rock-baião, com os versos "Adeus, vou embora meu bem/Chorar não ajuda ninguém/Enxugue seu pranto de dor/Que a seca mal começou". A percussão deliciosa mistura-se aos vocais animados e festivos, mesmo tratando sobre despedidas, sendo uma psicodélica atualização da original composta pelos consagrados Humberto Texeira e Sivuca.
A próxima foi escrita por Caetano Veloso. "Baby", também conhecida pela versão da gritadora Gal Costa ao lado de Veloso, ganhou vários ruídos misteriosos, teclados soando alto, distorções chorosas e ruídos zoados que combinam com a letra irônica, romântica e atual para a época. "Eu sei, comigo vai tudo azul/Contigo vai tudo em paz/Vivemos na melhor cidade/Da América do Sul". E, não sendo nem um pouco imparcial, a versão mutântica ficou bem melhor. Juro que não é implicância, Caê!
"Senhor F", subversiva como ela só, podia ser muito bem ser um jazz de algum musical dos anos quarenta ou cinquenta, com seus vocalistas berrando, impondo a voz e sendo acompanhados por efeitos de desenho animado. "Você também/Quer ser alguém/Abandonar/Mas tem medo de esquecer/O lenço e o documento outra vez" canta a revolta dançante com um baixão muito bem imposto. Não dê bola se ficar ouvindo essa música tão alto que sua esposa, sua mãe ou seu chefe mande abaixar o som. Por via das dúvidas, siga o refrão e dê um chute no patrão!
Acenda um charuto, prepara a galinha preta e liguem o Bat-Sinal! "Bat Macumba", de Gil e Veloso, experimental e visionária ao último, com melodias entrecortadas e agradevelmente irritantes que ainda seriam vistas mundo afora muitas vezes, com uma percussão tribal e um baixo que inevitavelmente prende a atenção, enquanto a banda grita insistentemente, "bat macumba ê-hê, bat macumba ô-bá!". Santo pai-de-sant0, Batman!
"Le Premieur Bonheur du Jour", música da chanson française famosa na voz de Françoise Hardy, um dos maiores ícones dos anos sessenta. Com introdução onomatopéica, logo se transforma na mais bela canção do disco, com a voz suave e viajante de Rita contribuindo com um charme todo especial, com ela cantando em bom francês, "A primeira alegria do dia/É uma fita do sol/Que se enrola na sua mão/E acaricia meu ombro", o acompanhamento singelo de Sérgio e Arnaldo só ajuda a fazer com que a canção tenha mais beleza ainda.
Introduzida por flauta e uma barulhenta bateria, "Trem Fantasma" logo cai em uma música lenta, arrastada e maníaca, com um ritmo envolvente e vocais derretidos e embebidos em psicodelia, com Rita, Arnaldo e Sérgio alternando e cantando junto sobre um trem fantasma que custava 400 cruzeiros. Casais se beijando, velhos amendrontados, Zé do Caixão e muito mais. Cheia até o pescoço de reviravoltas e com harmonias vocais belíssimas, a música é uma viagem só... E nem um pouco horripilante!
Um coro religioso introduz "Tempo no Tempo", mas logo vêm os jogos de palavras, as harmonias vocais brincalhonas, com o instrumental parecendo ser trilha sonora de algum suspense antigo. Não faltam os habituais ruídos de objetos mundanos ao mundo da música, as letras cheias de ícones e figuras e críticas escondidas ou nem tanto... Tudo isso na música mais curta da bolacha, não chegando nem aos dois minutos.
E fechando, "Ave, Genghis Khan". Com um teclado lisérgico e com a banda repetindo o título em tom até meio misterioso, a canção segue entre paradas, reviravoltas, quebras violentas de ritmo, progressões, feedbacks, um maravilhoso e distorcido solo de guitarra e "papai" César Baptista, a figura de quem Sérgio e Arnaldo levavam os golpes de cinta quando moleques, participando especialmente mandando a ver na ópera enquanto a fogueira da banda queima em guinchos distorcidos e backing vocals até meio sombrios.
E... O trem parou, os que queriam jantar morreram, o tempo se acabou, não adianta fazer bat-macumba. Vamos embora logo, daqui a pouco aparece le premieur bonheur du jour, daí coitado do Senhor F que vai levar bronca do patrão! O quê? Você perdeu o relógio? A Maria Fulô não foi embora? Você tá sem xarope pra essa tosse aí?
Tudo bem, tudo bem, não vamos nos preocupar em responder o "e agora, José?" fim-de-festa. Quer saber de algo, meu bom fidalgo? Coloque o disco aí de novo, que disco que nem esse merece ser ouvido repetidamente até o cérebro derreter e ficar todo mundo, segundo as previsão de Arnaldo, bem lóki. Vai fazer quarenta anos daqui a pouco e veja só! Ainda é maravilhosamente herético, bem-humorado e ousado. Não precisou nem assinar atestado de atemporalidade, pois afinal, disco que nem esse não envelhece nunca. Arriscaria dizer que no geral, o Rock está bem conservador se for comparar com essa preciosidade aqui...
Se algum careta disser que você anda meio maluco de escutar esses sons aí, relaxe. Lóki é quem te diz, e por não ouvir esse disco, não é uma pessoa nem um pouco feliz...
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8 Comments:
Tropicália foi algo fenomenal (é incrível como muitos conterrâneos acham que música baiana é só Axé e Pagode), e os Mutantes foi a maior banda de Rock and Roll que o Brasil já teve. Esse disco é um clássico, sempre atual.
Yes! Mutantes é daquelas bandas não-datadas. Pode ter ouvido há 30 anos atrás, como pode ter ouvido ontem que ainda soa bem.
Totaly crazy papito!
aêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaêaê
UHUL \o/
MUTANTESHHHHH
...
'cê 'tá pensando qu'eu sou lóki, bish?
Le premier bonheur du jour c'est un ruban de soleil qui s'enroule sur ta main et caresse mon èpaule. *-*
Mutantes são fodas, muito, muito fodas! *-*
Mutantes é atemporal, cara...
E quem ouve mutantes e não quer sair por aí cantarolando, é maluco total.
Ah, caras, afinal, eu não gosto muito de mutantes.Não, não tenho argumentos, mesmo.Eles são bons e tal, mas, eu não gosto :B
Álbum histórico, está na lista dos 100 melhores da música brasileira; dos 50 mais experimentais de todos os tempos; e nos 1001 discos para se ouvir antes de morrer. Merecidamente.
Este álbum dos Mutantes tem uma comunidade:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=31576203
Convido para uma visita.
preciso mesmo acrescentar algo?
duvido.
caralho! fiquei muito feliz com essa resenha!
to até ouvindo o álbum!
esse álbum talvez seja o mais transcendental de toda a música brasileira!
tá, tá...tudo bem que tem muitos outros geniais, mas esse?
esse é um desbunde artístico!
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