São vários os motivos que tornam o Nine Inch Nails uma banda única. O primeiro fato, sempre o mais lembrado, é que é uma banda de um homem só. Esse homem, Trent Reznor. Um dos artistas mais tristes e sinceros que alcançaram renome na história da música contemporânea e, diga-se de passagem, o mais auto-destrutivo de todos. Há quase 20 anos o homem chamado Trent produz uma música cerebral e emocional, cheia de texturas e paisagens depressivas e pesadas, agressivas e desesperadas.
Em 1994, com o álbum que é resenhado agora, nesse post, no mesmo ano em que Kurt Cobain morria, não aconteceria uma contraposição de espírito como vinha acontecendo anteriormente - com o rock and roll básico dando lugar ao progressivo e ao glam, que logo era substituído pelo punk/hardcore, que eram então substituídos pelo hard rock farofa... Nesse vai e vem de intelectualidade, revolta e alienação, a tristeza em forma de música mostrada por The Cure, Joy Division e Bauhaus deu lugar ao grunge, que por mais que tivesse bandas de sonoridades totalmente diferentes, suas letras falavam sobre temas bastante sérios, deixando para trás o hedonismo e diversão do rock farofa. Após a queda do Muro de Berlim e o colapso da antiga União Soviética, atual Rússia, com o capitalismo selvagem dos Estados Unidos sendo a única alternativa econômica para a maioria esmagadora dos países ao redor do mundo. No Brasil, éramos atingidos por duros golpes como o caso Collor mesmo depois de o sonho das Diretas Já serem alcançados.
Após uma multifacetada década de 80, ainda esperançosa de dias melhores, os anos 90 não pareciam serem muito promissores para a humanidade. Quem dera para os jovens, que começaram a prestar atenção em problemas como drogas pesadas, violência familiar e escolar, depressão e outras doenças psicológicas, etc. Após o auge do movimento flaneludo de Seattle, tinha chegado a vez do Industrial. Da tristeza terminal de Reznor, da acidez corrosiva de Marilyn Manson, entre outros da música pesada eletrônica, como o KMFDM, Rob Zombie e Ministry.
"The Downward Spiral", considerado por muitos fãs a obra prima de Trent, onde ele começou a angariar a lenda que existe em torno da sua pessoa, e é uma representação fiel desse período da história tão incerto e vazio, sem quaisquer perspectivas. Reznor gravou o álbum na mansão onde os seguidores da seita de Charles Manson cometeram o assassinato da atriz Sharon Tate, esposa do cineasta Roman Polanski (de "O Bebê de Rosemary"). O "gênio da auto-destruição" produziu uma atordoada e difícil obra conceitual sobre um homem que desiste de viver, mas que antes de abandonar a prória existência se desliga aos poucos de tudo - da religião, da vida social, do sexo, do amor, entre outras coisas. Um dos trabalhos mais influentes do que convencionou-se a chamar de industrial.
Tais afirmações podem ser sentidas logo na primeira música, a fenomenal "Mr. Self-Destruct", onde Reznor introduz o personagem principal da história: alguém extremamente dependente, que se deixa ser controlado por qualquer coisa. Uma pancadaria infernal quase incessante, com Trent no limite do nervosismo, gritando "Eu te levo onde você que ir/Eu te dou tudo o que você precisa saber/Eu te deixo fraco e te esgoto/Senhor Auto-Destruição" no refrão. Ao longo da letra, vemos que a pessoa desenvolveu dependência pelo seu lado destrutivo, a ponto de não conseguir largá-lo em momento algum - todas as crenças e todos os fatos parecem estar ligado ao "senhor da auto-destruição".
O clima é quebrado subitamente quando entra "Piggy", canção com baixo marcante e um vocal arrastado e mórbido de Trent, onde ele se mostra cada vez mais decidido na sua escolha, ao cantar insistentemente "nada pode me parar agora/porque eu não me importo mais". Ao longo da letra, vemos que o título da canção é em referência à uma pessoa que fez ele perder tudo e que degradou o estado emocional dele, forçando o eu-lírico a tomar a escolha de não se importar com mais nada.
"Heresy" simboliza o rompimento de Trent com a fé em Deus e a religião. Dos versos mais calmos, onde Trent canta de jeito fino e oprimido nos versos para cantar com fúria e indignação no refrão "Deus está morto/E ninguém se importa/Se existir um inferno/Te vejo por lá!". Na letra, ele ataca a grande manipulação promovida por instituições religiosas nos versos "Ele tem as respostas para acalmar minha curiosidade/ele sonhou com deus e chamou de cristianismo" e então questiona, nos últimos versos da música, se a pessoa morreria por um deus hipócrita, que demandou vírus, morte, sofrimento e dor através da devoção, mantendo o rebanho de ovelhas na linha através da fé cega.
Outro impacto fortíssimo segue com um clássico da banda, "March Of The Pigs". Uma música com contrastes fortíssimos, passeando por um peso monstruoso com vocais no limite da indignação, dando uma freada total em momentos que o teclado segue a voz arrastada e sinistra de Reznor. Na letra, Trent demonstra grande desprezo pela sociedade em geral cantando "todos os porcos estão alinhados/eu te dou tudo que você quer/(...)/os porcos ganharam essa noite/agora eles podem todos dormir sonoramente/e tudo então está bem". Uma avalanche de ódio que dá momentos para respirar apenas para logo voltar com a pancadaria insana.
"Closer" entra com seu ritmo dançante, revelando a música mais famosa no disco, um tratado do autor sobre a obsessão sexual. De novo, o personagem principal revela ser uma pessoa bastante dependente das outras, dependendo da pessoa por quem ele é obsessivo para qualquer coisa. Essa obsessão destrói ele aos poucos, como no eternizado verso "Eu quero te foder como um animal/Eu quero te sentir por dentro/Eu quero te foder como um animal/Toda a minha existência é violada".
O clima de destruição segue com a neurótica "Ruiner", com todos os seus ruídos e efeitos entremeados entre batidas pesadas e guitarras violentas. Reznor questiona como ele deixou que uma figura destruidora entrasse na sua vida, como ele deixou se levar com tanta facilidade, como ele repete no refrão "Como você ficou tão grande?/Como você ficou tão forte?/Como isso ficou tão difícil?/Como isso ficou tão longo?". Da amargura à revolta, os vocais da música e os climas transmitidos pelo instrumental da mesma proporcionam uma verdadeira viagem atormentada. Ao final da canção, o personagem reafirma sua convicção de não poder ser interrompido: "Você não me machuca, nada pode me machucar/Você não me machuca, nada pode me parar agora".
"The Becoming" é tensa, com um início soturno e crescente que descamba para as batidas eletrônicas pesadas e sequenciadas do industrial fazendo pano de fundo para a voz de Trent se sobressair na canção. Na letra, o personagem principal vê ele próprio tornar-se um monstro. Ele declarar poder tentar escapar disso, mas afirma que está preso à sua causa, que está consumindo ele, tornando ele alguém diferente. Uma das partes mais atormentadas diz: "Isso não vai acabar, isso me quer morto/Que inferno esse barulho na minha cabeça", contrastando com um vocal sumido e mórbido e batidas cadas vez mais altas.
Cada vez mais distante e frio, em "I Do Not Want This" mostra o personagem principal como alguém inseguro, ciente da própria fragilidade e admitindo estar perdendo o jogo. A sequência da bateria eletrônica, com um som totalmente seco, entra em contraste os vocais mórbidos de Trent e as melodias depressivas que aparecem discretas. A suavidade de Reznor sussurrando "Eu não quero isso" logo torna-se uma avalanche de ódio onde ele grita com todo mundo que cerca ele: "Não me conte como eu me sinto/Você não sabe como eu me sinto!". O ideal frustrado de ter tudo sob o seu controle aparece nos versos finais, em "eu quero conhecer tudo/eu quero estar em todo lugar/eu quero foder todos no mundo/eu quero fazer algo que importe", que parece refletir como era o espírito desesperado dos jovens na época, imersos em um mar de tédio ao se defrontarem com um esquálido futuro.
A mais curta do álbum aparece na brutal "Big Man With A Gun", que abre com ruídos e batidas ensurdecedoras para logo crescer e virar uma música corrida e mórbida, onde ele declara ser um homem perigosíssimo, totalmente alucinado e, como nós já vimos, perigosíssimo por não se importar com mais nada, como ele grita "Atire, atire, atire/Estou cercando todos vocês/Eu e minha arma fodona!", podendo ser entendida como um ataque violento e armado à toda sociedade, ou então mais uma música sobre a perversão sexual do autor. Sugiro a leitura das letras à parte dessa resenha, pois elas poderão gerar mais de uma interpretação. Uma verdadeira bola de neve de revolta sobre alguém que desistiu de tudo e partiu para o ataque.
"A Warm Place" surge como um alívio aos ouvidos em relação à faixa anterior. É uma instrumental climática e muito depressiva, como se após o ataque de ódio, começasse a surgir na consciência do "senhor auto-destruição" os primeiros sinais de arrependimento e remorso por romper laços com a sociedade de forma brutal, sem se importar com nenhuma consequência. "Um lugar quente" no meio de todo o banho frio de sangue que o personagem construiu à sua volta.
De toda essa suposta calmaria, "Eraser" surge aos poucos, com ruídos pertubadores e murmuros que não preparam o ouvinte para as batidas que começam repentinamente, sem aviso algum. Trent, muito espaçadamente fala das necessidades dele, calmamente: "Te usar/Sonhar com você/Encontra você/Te provar/Te foder/Te usar/Te cicatrizar" para depois se auto-flagelar em um acesso súbito de fúria, onde a música vira um inferno de peso e dor: "Me perder/Me odiar/Me amassar/Me apagar/Me matar". Uma música que causa um verdadeiro suspense no ouvinte, deixando ele despreparado para as próximas reviravoltas que ocorrerão a sguir.
"Reptile", a mais longa do disco, é também uma das canções mais atormentadas e culpadas que eu já tive a oportunidade de ouvir. Em uma canção que parece um mastodonte caminhando de tão pesada. Com a mente torturada, Trent deseja a garota de qualquer jeito, diminuindo-se a si mesmo para que sua obsessão só aumente: "oh, minha bela mentirosa/oh, minha puta preciosa/minha doença, minha infecção/eu sou tão impuro". Figuras místicas como demônios e anjos surgem na letra como uma metáfora ao verdadeiro labirinto que está a mente do personagem principal, que faz ele cada vez mais ter certeza das suas decisões.
Chegamos então à faixa-título, "The Downward Spiral", uma música mais do que sinistra, com um dedilhar desesperançoso de cordas, com uma vibração que parece ser algo escorrendo insistentemente. Reznor fala com uma grave entonação de voz: surgem então versos como "ele não podia acreditar como era fácil/ele colocou a bala dentro da sua face" e "problemas tem soluções num único flash". O barulho de escorrimento torna-se cada vez mais forte ao que Trent fala "Tudo é azul nesse mundo/A mais profunda das pragas azuis/Tudo confuso/Vazando para fora de minha cabeça". Então, surge o barulho da roleta de um revólver sendo girada insistentemente...
...Fazendo continuidade com a então última faixa, uma das músicas mais conhecidas do álbum. "Hurt". Uma melodia arrastada de cordas acompanha Reznor enquanto o mesmo canta "Eu me machuquei hoje/Para ver se eu ainda sinto/Eu me concentro na dor/É a única coisa real...". Uma canção que mostra o final da história da espiral descendente: o arrependimento. De deixar tudo para trás, de não se importar com ninguém. Ele pensa culposamente "Que diabos eu me tornei/Meu doce amigo/Todos que eu conheço vão embora no final" e afirma, no final, "Se eu pudesse começar de novo/A milhões de milhas daqui/Guarda-me-ia/Eu acharia um caminho". À esse ponto, o personagem da história está tão deprimido, que, ao falar na voz de Reznor, sua voz quase praticamente não sai. Muitas vezes, as calmas melodias de cordas e pianos encobrem seu vocal. Até seus gritos tornam-se apáticos. No final, a música cresce em tensão, em uma explosão elétrica, apenas para sumir ao som do vento.
Mais do que uma obra-prima do Metal Industrial, ou do Rock And Roll, é um dos mais complexos artefatos da música contemporânea. Um dos poucos álbuns conceituais onde as canções são totalmente independentes entre si, e que, organizadas na sequência em que estão, revelam uma história que realmente faz pensar. Se realmente vale a pena encarar os problemas de frente, ou desistir de tudo. Se é melhor ter a oportunidade de consertar tudo que há de ruim, ou conviver com o arrependimento amargo e frio.
Não hesito em chamar Trent Reznor de um gênio. Não um gênio musical, apesar de ter desenvolvido uma música única, mas pelas obras que consegue criar, sempre revelando nosso lado ruim e atordoante, sempre nos provocando reflexões. Impossível ficar indiferente à todas as obras de Trent. Mesmo sendo de um gênero musical com um estereótipo extremamente "monstro", o industrial, a música de Reznor soa humana. Soa realista. Talvez, a única monstruosidade seja revelar o lado atormentado do mais antigo de todos os monstros, aquele com quem convivemos todos os dias. O próprio ser humano.
Marcadores: Resenhas
11 Comments:
Ótimo álbum, Ótima banda e ótima resenha. Estão de parabéns...
cara, eu não gosto de nin, eu acho meio chato, sei lá.
mas também, não conhecia esse lado conceitual do reznor, mais artístico...
é isso, vou baixar pra ouvir, e com carinho dessa vez
ficou linda a resenha, tchio
Piggy, pra mim, é a de ouro do álbum, e minha música favorita do Nine Inch Nails. Eu gosto do clima destrutivo e incostante do The Downward Spiral e em termos de poesia considero o melhor álbum do Nine Inch Nails/Trent Reznor.
Eu gosto da 'arrumação' do álbum e da independencia das músicas que você citou... Por mais que o monstro dentro do homem seja o tema principal de todos os grandes artistas, Trent consegue surpreender e inovar e fazer sempre um trabalho inovador e até disconcertante de tão brutal e realista. Eu o admiro e o considero um grande artista, multi-facetado dentro da música. Um gênio, realmente um gênio.
Parabens pela resenha ^_^
Ahaaaa esse é bom! =D~
Nine, mt mt foda!
é realmente um som único...
e resenha ótima, pra variar! xD
bjoo ber! ;*
não conheço essa banda de um homem só, mas pela derscrição na resenha parece ser mto bom... "texturas e paisagens depressivas e pesadas..."
deve ser um som diferente;
vou baixar!
:*
Esse disco é legal, mas não tem nada demais.
Aliás, Nine Inch Nails, comparado a outras coisas do Industrial, não tem nada demais...
Eu quero gostar de NIN mas não estou conseguindo... :(
Vou tentar ouvir este disco de novo.
Abraços,
Luis
http://luismilanese.wordpress.com
Teu blog é muito bom.
tudo no nine inch nails é foda, trent reznor é simplesmente foda
Excelente resenha. Este disco é muito bom. Perfeito desde as letras, arranjos, temática e interpretação.
Perdoem-no, não sabe o que diz. Já pesquisou a fundo a influência desse álbum no cenário do rock industrial? Ta no TOP 10 da história do gênero (e não é a minha opinião)! É uma indiscutível obra-prima, prefiro acreditar que fez tal comentário pra "aparecer", nada além...
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