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    domingo, janeiro 20, 2008
    Serge Gainsbourg - Histoire de Melody Nelson



    Melodias delirantes, baixo e bateria esfregando-se como dois corpos, assim como nos melhores dias da música negra americana, uma voz masculina grave e rouca carregada de cigarro e álcool e uma voz feminina frágil e sensual. Um resultado final que mesmo tendo visto a luz dos holofotes há mais de trinta anos, ainda é tido por muitos como pervertido, subversivo e amoral.

    Assim como sua música, monsieur Serge Gainsbourg cercou sua carreira de polêmica. Adepto apaixonado da tríade bebida, mulheres e música, incontáveis foram as vezes que foi censurado, sofreu ameaça de excomunhão e ameaças semelhantes, incomparável foi a beleza de suas amantes e incontestável foi a importância que suas composições tiveram para a chanson française. O filho de judeus russos era um incurável workaholic que compôs para e gravou com os principais nomes da música francesa no século vinte. As divas Françoise Hardy, France Gall, Catherine Deneuve, Brigitte Bardot e sua esposa Jane Birkin devem alguns dos principais sucessos de sua carreira fonográfica a este homem também responsável pela trilha sonora de mais de quarenta filmes.

    Já consagrado como crooner na França, Serge passou por um período atribulado ao final dos anos sessenta. Além de ter seu espaço na gravadora diminuído desde o início do sucesso do Rock e do Twist, havia acabado de terminar um relacionamento com a deusa loira Brigitte Bardot e tendo a gravação com a mesma para a música “Je T’aime (Moi Non Plus)” proibida de ser lançada, já que Bardot temia que gerasse polêmica.

    Geraria, mas não com ela. Depois de Marianne Faithfull recusar o convite, Gainsbourg conheceu a atriz Jane Birkin, protagonista do primeiro nu frontal do cinema, no clássico “Blow Up – Depois Daquele Beijo”, do mestre Michelangelo Antonioni. Mesmo não se interessando de início, os dois acabaram engatando uma das mais tórridas relações da história da música pop. Foi com ela que “Je T’aime (Moi Non Plus)” foi regravada e lançada, encontrando sucesso mundial como a primeira famosa ou famigerada “música de motel”.

    Porém, não contente com tão pouco, o versátil Serge foi além. Influenciado pelo jazz, pelo soul, pelo rock psicodélico, pela música de sua pátria, e por bandas inglesas como Rolling Stones, The Kinks e The Pretty Things, Gainsbourg compôs e gravou aos quarenta e três anos ao lado de Birkin uma de suas maiores e mais ambiciosas obras primas, mas nunca perdendo o gosto pela quebra de tabus, que mais uma vez fez um disco envolvendo taras, sensualidade, assassinato, misticismo... Mais uma vez dando um passo à frente de seu tempo.

    E em março de 1971, o mundo testemunhava o nascimento do irmão mais velho de Charlotte Gainsbourg: o álbum conceitual “Histoire de Melody Nelson”. O encontro de vários mundos musicais digeridos e regurgitados em forma de arte é de uma beleza, sensibilidade e sensualidade únicas. A união da provocadora deusa Birkin com o elegante bardo marginal Gainsbourg é uma das parcerias mais fenomenais da história da música. E, creia, o álbum a seguir é a maior prova disso.

    Tudo começa nos sete longos minutos de “Melody”, iniciada por uma bateria discreta, um baixo lento e corajoso, e o vocal falado de Gainsbourg, que quase sem o ouvinte perceber, começa a ser acompanhado por guitarras regadas a psicodelia. Serge canta sobre uma vista que fez em seu Rolls-Royce de vinte e seis cavalos de potência até a zona mais perigosa e isolada da cidade e quando menos percebeu, atropelou uma linda jovem de cabelos vermelhos naturais.”Princesa das sombras, arcanjo maldito/Amazona em um estilo moderno que o escultor/Em inglês, a chamou de Espírito do Êxtase”, descreve antes de anunciar que perdeu o controle do carro. As orquestrações, junto com a guitarra, descrevem o momento mais intenso da música e o momento da primeira conversa dos dois. O instrumental é moderno o suficiente para a época para estar no disco de qualquer banda emergida de Woodstock.

    Ballade de Melody Nelson” é novamente introduzida pelo baixo, e Serge canta torturado sobre doces cordas e acompanhado do ao mesmo tempo provocador e ingênuo vocal de Jane Birkin. “Um pequeno animal/Essa Melody Nelson/Uma adorável pequena garota/E uma garota tão deliciosa/Que eu só conheci/Por um instante”. E mesmo estando possessivamente apaixonado e obcecado por Melody, sabe que a pobre garota tem seus poucos dias de existência contados para terminarem bem cedo. Um delicado tormento da rouquenha voz.

    “O sol é raro/A felicidade também/O amor se perde pela vida”, assim Gainsbourg inicia “Valse de Melody” com as orquestrações em ritmo de valsa dando espaço para que o crooner diga que apenas nos braços da garota é que o mundo se move. Em um minuto e meio, em uma letra verdadeiramente poética, Gainsbourg soa triste, carregado, quase sombrio, fazendo desta uma canção com poder incrível, mesmo com a curta duração.

    Ah! Melody” novamente é uma canção com menos de dois minutos, sendo esta talvez a música mais doída da bolacha, em que o amor possessivo de Serge alcança seu ápice: “Oh, Melody/Você não sabe o que é o amor/Você me disse isso/Mas tudo que você diz é verdade?” e “Se você mentir para mim eu farei/Algo insano/Eu não sei o que farei com você” são versos que atestam um indivíduo à beira da psicose, por mais que seja a beleza de suas harmonias vocais e suas melodias, apesar de tristes, nunca ofenderem os ouvidos.

    Um baixo desafiador introduz o sexy rock psicodélico “L’Hotel Particulier”, onde Gainsbourg, em lugar de cantar, volta a sussurrar e falar com o ouvinte, dessa vez descrevendo um hotel que atende a qualquer pedido seu. A firme bateria, a envolvente harmonia do piano e orquestrações que golpeiam com classe abre espaço para Gainsbourg cantar “Acima dessas escravas negras de ébano/Que observarão silenciosamente essa cena/Enquanto o espelho nos reflete/Eu lentamente abraço Melody”.

    Poucas vezes na história da música pop viu-se música tão sensual e provocativa quanto “En Melody”, guiada por um delirante riff de guitarra e uma cozinha desenfreada, que desce o braço em companhia às seis nervosas cordas. Quase instrumental, a música é composta apenas de instrumental e os risos, gritos e gemidos excitados e frenéticos de Jane Birkin. O solo se entrega aos ensinmantos de Jimi Hendrix. Não precisou de nem das palavras do velho safado francês. Que, a propósito, surge no final para dizer “Melody quis revisitar o céu de Sunderland/Ela pegou o 707, o avião da noite/Mas o piloto automático no comando da máquina/Cometeu um erro fatal para Melody”.

    Cargo Culte” é, talvez, a maior obra-prima do álbum. Abre em compassos lentos, com Serge mais rouco do que nunca, dizendo de maneira invocada que invocou um feitiço xamânico aprendido na Nova Guiné, fazendo com que o avião caísse. Em meio a lembranças nostálgicas do místico país, um mórbido coro, um baixo hipnótico e a guitarra ainda ousada, a peça mais rica em detalhes do álbum é trágica lírica e musicalmente, de uma dramaticidade poderosa e chocante o suficiente. Todo o álbum parece vir em flashback com os sussurros de Birkin e o coro indo do ápice ao enfraquecimento em uma nota suspensa quase transcendental, unindo os muitos mundos musicais que fecham o álbum até encontrar seu final em esvanecimento.

    Serge, muito mais que a maior estrela da chanson, bem mais que apenas um artista pervertido, encarnou como ninguém os excessos com classe, elegância e libido. Serge era agonia e sexo, angústia e prazer, dor e gozo saindo pelas caixas de som sem a mínima vergonha. A quem ouvir, Gainsbourg recepciona com uma rosa em uma mão, uma arma na outra, um cigarro entre os dedos e um microfone, um copo de cerveja e Jane Birkin onipresentes. Violência, sexo e ebriedade. É disto que é feita esta genial obra, uma das que melhor capturam o universo e inferno particular de uma lenda que inspirou e até hoje inspira nomes como Mano Negra, Pulp, Suede, My Bloody Valentine, Nick Cave, Mike Patton, Cibo Matto, Sonic Youth, Beck, Franz Ferdinand, Placebo e Massive Attack. Mas querer sintetizar o universo de Serge chega a ser uma pretensão quase ofensiva. Seja guiado, seja violado, seja maravilhado... Seja bem-vindo à escória mais classuda de todas.

    Marcadores:

    posted by billy shears at 5:20 AM

    8 Comments:

    Blogger Gabriel M. Faria disse:

    vou ouvir primeiro, aí comento. ^^

    7:04 PM  
    Blogger natália; disse:

    não conheço, nem nunca ouvi falar.
    mas pra servir de inspiração pra pulp, sonic youth, franz, placebo... coisa ruim não deve ser, né?

    8:41 PM  
    Blogger gabriel disse:

    só ouvi a música que você me mandou, mas mesmo assim achei interessante a sonoridade. =]

    11:11 PM  
    Blogger Felipe Gomes disse:

    valeu pela indicação!
    continue escrevendo!

    9:58 AM  
    Blogger Felipe Muniz disse:

    obra-prima!
    isso é som cafajeste estiloso.
    coisa fina mesmo!
    ótimo texto!

    10:15 PM  
    Blogger Felipe Muniz disse:

    Ah! Sobre a influência sobre o Pulp, não tem como não notar a sombra de Serge rondando o disco Different Class, com Jarvis Cocker cantando Pencil Skirt ou Underwear... o vocal sussurrado e sensual denuncia!

    10:19 PM  
    Blogger Carmem Luisa disse:

    Pervertido, submisso e amoral?

    Me interessa.

    11:25 AM  
    Blogger Amanda disse:

    fuck music de primeira.
    e diretamente da frança. combinação melhor? impossível.

    10:12 PM  

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